Coronavírus e o fim (deste) mundo

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20 maio 2020

Criar novas possibilidades a partir das principais problemáticas do planeta é uma prática constante da equipe do Imagina Coletivo, coordenada por Fernanda Cabral – ativista, comunicadora e empreendedora. Entre seus diversos projetos de impacto, destaca-se o movimento Imagine2030, que tem como pilares os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU e mobiliza pessoas para a construção desse futuro possível. Nada mais propício para tempos como esses que estamos vivendo, não é? Neste artigo: “Coronavírus e o fim (deste) mundo”, Fernanda nos convida a imaginar, frente ao colapso, um novo futuro possível e a desfrutamos de um amanhã mais sustentável, humano e com mais oportunidade para todos. Pegamos carona nesta leitura e convidamos você a vir com a gente nesta reflexão:

Fernanda Cabral – Ativista, comunicadora e empreendedora do Imagina Coletivo e Imagine2030

Eu sou do time que no começo não levou o novo vírus muito a sério. Ouvindo sobre como se espalhava na China e como chegou na Europa e sua potencial ameaça mundial, achava tudo meio exagerado e pensava que todo o barulho em torno dele era provavelmente coisa de gente (e mídia) querendo espalhar medo e vender remédio. Eu obviamente mudei de opinião rapidamente e nem de longe cheguei aos absurdos do então presidente do Brasil, Jair, que enquanto seu próprio governo recomendava evitar aglomerações, incentivava e participava de manifestações na rua, dizia ser só uma gripinha e teimava em fazer uma festa de aniversário. Ah, Jair, que nenhuma saudade eu sinto de você! Ainda hoje quando eu lembro do comportamento absurdo do ex-presidente nos primeiros dias do Coronavírus no Brasil me parece uma pegadinha de TV ou coisa de um outro planeta. Na verdade, quando eu lembro de como quase tudo funcionava antes do Coronavírus – saúde, trabalho, economia, relações internacionais, relações pessoais e familiares, alimentação, transporte, política – eu tenho certeza que era outro planeta. Quem diria, no ápice do medo e da ansiedade, com o perigo eminente de uma doença que mataria milhares de pessoas, a humanidade encontraria um caminho para se reinventar completamente!

Se as notícias em torno da Covid19 e o isolamento social do início de 2020 davam a sensação de fim do mundo, é porque era, não o fim do mundo mundo, mas o fim do mundo como a gente conhecia e como ele funcionava. Foi o colapso de quase todas as estruturas ao mesmo tempo.

Primeiro, a sobrecarga no sistema de saúde. Especialistas diziam (e a realidade de alguns países demonstrava) que o risco maior era a velocidade do contágio sobrecarregando o sistema de saúde que não tinha estrutura para testar todas as pessoas, internar todas as pessoas infectadas, atender todos os casos urgentes e ainda dar conta de todas as outras doenças e emergências que continuaram existindo. A tal quarentena recomendando que as pessoas ficassem o máximo dentro de casa e hábitos como lavar as mãos frequentemente e higienizar maçanetas e celular, por exemplo, deram início a uma transformação mundial na abordagem em relação a saúde. Ficou óbvio que, para a Covid19 e todas as outras enfermidades, era mais fácil e mais barato prevenir do que tratar e em todo o mundo, das universidades de medicina aos hospitais e consultórios, o foco passou a ser construir saúde através da prevenção ao invés de tratar doença. A doença deixou de ser um negócio em que profissionais e hospitais ganhavam dinheiro por procedimentos e, nessa nova abordagem, as pessoas passaram a ser protagonistas na construção de sua própria saúde. O período de isolamento demonstrou a importância da saúde da mente, que ganhou o mesmo status de seriedade que a saúde do corpo. Foi o inicio de uma mudança global de comportamentos que envolviam, além da rotina de higienização, manter o corpo em movimento, meditação, ter um hobby, fazer parte de uma comunidade e, principalmente, novos hábitos alimentares. Comer comida de verdade, comida produzida e cultivada localmente, fortaleceu o corpo e diminuiu drasticamente diversos tipos de doenças; também gerou renda e resgatou importância de milhares de pequenos produtores. Empresas gigantes de alimentos ultraprocessados foram perdendo espaço, assim como as gigantes farmacêuticas. Milhares de patentes foram quebradas e tornaram-se patrimônio coletivo. Em todo o mundo, médicos passaram de uma relação hierarquizada para uma relação de parceria com aqueles que atendiam. E sabedorias ancestrais, como as medicinas indígenas passaram a ser amplamente consideradas, ensinadas e praticadas. O Coronavírus fez da saúde novamente uma responsabilidade coletiva e a saúde pública tornou-se absolutamente central e uma prioridade. Filas em hospitais e espera por procedimentos ficaram no passado. E porque a prevenção é tão eficiente em reduzir o número de doenças, não foi necessário nem investir mais dinheiro para que isso acontecesse.

Ai teve a mudança no trabalho. Quando surgiu a recomendação de isolamento, empresas, institutos e organizações sociais reagiram rapidamente se adaptando e permitindo que os colaboradores trabalhassem de casa. A nada inovadora, mas ainda muito rara, política do home office tornou-se a regra para muitos profissionais naquele momento. Milhares de pessoas puderam experimentar trabalhar de casa e a relativa autonomia que isso trazia. Economia de dinheiro e tempo no transporte, a possibilidade de acordar um pouco mais tarde ou de uma soneca depois do almoço, a possibilidade de uma série de exercícios físicos no meio da tarde ou de ir correndo até o mercado comprar comida para a semana no meio da manhã. Passado o período de adaptação e a dificuldade em construir uma rotina no novo espaço, muitas pessoas puderam experimentar uma qualidade de vida que não conheciam anteriormente. Mais tempo para si mesmo e para família. Menos horas de trabalho e horas mais produtivas. Quando acabou a quarentena e a angústia de não poder sair quase nunca de casa, o trabalho remoto seguiu como política de muitas empresas com os colaboradores trabalhando em média 3 dias por semana de onde quisessem. Mas essa não era a realidade de todos.

Falava-se em isolamento, mas porteiros seguiam na portaria dos prédios, trabalhadores do comércio seguiam em caixas, balcões e afins, pessoas seguiam nas cozinhas, no chão de fábrica e nas construções, motoristas seguiam conduzindo ônibus e carros por aplicativos, profissionais da limpeza seguiam limpando banheiros e lavando roupas em seus locais de trabalho. E seguiam se deslocando diariamente pela cidade e usando transporte público. Tudo na contramão das recomendações de prevenção e justamente as pessoas mais pobres e mais vulneráveis frente a possível doença. Muitas das pessoas que estavam se resguardando em casa perceberam o absurdo dessa situação. Se a saúde era uma responsabilidade coletiva, como estar pacificado ao proteger a si mesmo e sua família ignorando tantas outras pessoas e famílias? Mas como todo mundo poderia ficar em casa e seguir tendo dinheiro para viver? Questões da época que pareciam impossíveis de responder.

Num primeiro momento, alguns patrões e patroas liberaram seus funcionários para ficarem em casa e mantiveram seus pagamentos, atitude muito elogiada e bem vista pelo exercício da coerência. Por mais que a maioria dos empregadores insistisse que era preciso manter a produção e tenha seguido indiferente, a pressão pela liberação só aumentava já que se mostrava efetiva para desacelar o contágio. Mas a situação era obviamente insustentável e, em pouco tempo, cortes de salário e desemprego, medos que sempre pairaram, se tornaram realidade. As piores previsões eram reais e aquela economia realmente colapsou (e rápido) e por um breve tempo aconteceu o caos que todos temiam. Foi um período… desafiador. Mas durou pouco. No meio do caos, uma conversa antiga que sempre acontecia de forma marginal ganhou relevância e eco em vários lugares do mundo ao mesmo tempo, levando a uma mudança definitiva.

A nova economia. Economia da terra, circular e solidária. Correndo o risco de ativar a ira de alguns ainda apaixonados por aquele velho sistema, preciso afirmar que o fim daquele capitalismo e visão de desenvolvimento foi a mudança mais radical e significativa que aconteceu, mudança transversal a todas as outras e transversal a todos os aspectos da vida no planeta. Aquele extinto capitalismo era baseado na escassez de recursos, alimentando constantemente o medo de ficar sem, que alimentava a feroz competição e o acúmulo, um frenético cada um por si. O oposto da nova economia. A nova economia ampliou o conceito de lucro e riqueza e se construiu a partir de uma visão integrada da vida no planeta. A premissa é a da abundância em que há recursos para todos e, por isso, podemos colaborar, compartilhar e criar juntos, confiando e se fortalecendo coletivamente. A nova economia é pautada no equilíbrio entre a geração de valor e lucro social, lucro ambiental e lucro financeiro, todos considerados retorno para acionistas com igual importância. Agora, atividades que aumentam a biodiversidade, protegem a natureza ou recuperam áreas degradadas estão gerando lucro e as atividades que aumentam a qualidade de vida e o bem-estar das pessoas, que fortalecem comunidades, que geram saúde, que combatem desigualdade e promovem uma convivência pacífica também estão gerando lucro. Nessa nova economia, todos os indicadores de antes precisaram ser revistos, abandonados, reinventados.

Quando no começo de 2020 as bolsas de valores despencaram (e seguiram oscilando sempre em baixa) e o dólar e a dívida dos países e das pessoas disparou, era óbvio que as empresas não dariam conta de sobreviver naquele modelo sem ajuda direta e continua do governo. Falou-se mais uma vez em resgate em nome dos empregos e pela primeira vez aquele pareceu um papo antigo… As pessoas se perceberam se repetindo: mais uma vez salvar com urgência as empresas? Em busca de qual falsa estabilidade seguimos repetindo essa escolha? Cada vez mais pessoas começaram a questionar o mercado financeiro e seu codificado funcionamento, jogo de tão poucos vitoriosos. E com a pobreza crescendo rapidamente e cada vez mais pessoas vivendo suas duras consequências, soou como absurda a ideia do governo de mais uma vez repetir o passado e escolher usar o dinheiro de milhares de CPFs para salvar alguns poucos CNPJs com a promessa de manter empregos, salvando um sistema que desde sempre mantem a vida difícil de muitos e a infinita riqueza de pouquíssimos. Jair e empresários pediam coragem e paciência para um necessário sacrifício, insistiam na normalidade e que era preciso seguir produzindo, falas que soavam cada vez mais absurdas e geravam uma espécie de revolta. Frente a possível perda de muitas vidas, como a prioridade era salvar empresas? Como seguir sacrificando justamente quem tem menos, para manter um ritmo de produção e consumo que muito antes do Coronavírus já extrapolava a capacidade de se recompor do planeta? Se as pessoas estão perdendo e a natureza está perdendo, quem está ganhando? Essas perguntas e reflexões antigas, que aconteciam a margem descreditadas ou ridicularizadas como papo de comunista-vai-pra-cuba, foram ganhando cada vez mais força, inclusive entre quem tinha dinheiro. Por um tempo ficou ainda mais gritante a desigualdade social e vivemos uma escalada de violência impulsionada pelo desespero mas, pra surpresa de muitos, bem nesse momento ganhou força a luta dos direitos humanos e dos direitos da natureza. As pessoas diziam: se é pra ter coragem, que seja para mudar! E foi assim que tudo começou.

O congresso resgatou um projeto já conhecido e votou em caráter de urgência a implementação da renda básica de cidadania, garantindo o direito universal a uma renda mensal para toda a população brasileira por tempo indeterminado. Com uma renda garantida, as pessoas puderam respirar. O dinheiro para isso veio do governo e de um fundo com doações de bilionários brasileiros. A exemplo do Equador que desde 2008 tem em sua constituição a natureza como sujeito de direitos, também foi modificada a constituição brasileira para garantir a proteção e preservação de todos os recursos naturais. Poucas vozes conservadoras esbravejaram, mas não conseguiram conter essa mudança que acabou se replicando por todo o mundo. Com isso, a mineração e retirada de petróleo perderam significativamente seu valor e foram severamente restritas a áreas e quantidades específicas e, ao contrário de incentivos do governo como antigamente, ficaram sujeitas a altas taxas. Passou também a ser proibida a venda de água para consumo das pessoas, considerada um direito e um recurso coletivo. Indústrias que consomem água acima de determinada cota pagam caro por ela e prestam contas de seu consumo de forma rigorosa para toda comunidade. O recurso dessas taxas vai para o Fundo das Águas, que investe na recuperação de mananciais, purificação da água já utilizada e na distribuição gratuita para as pessoas. No novo cenário, o agronegócio das monoculturas, das sementes de laboratório, dos milhos e sojas transgênicos, dos agroquímicos venenosos, dos pastos gigantes e granjas apertadas, a “indústria pop” do Brasil, ruiu rapidamente. Novos impostos foram aplicados a essa forma de produção para pagar pelos danos ambientais e custos com doenças que geravam. Aconteceu um grande esforço de resgate e compartilhamento de sementes crioulas, cresceu a produção local, orgânica e a agricultura familiar. A agrofloresta se consolidou como modelo produtivo e a criação de animais passou a acontecer em conjunto com a vegetação local, no modelo de silvopastagem. E quando, em 2020, imagens da Nasa registraram significativa queda da poluição nos grandes centros urbanos no auge do surto vírus, ficou provado que era possível também mais essa mudança radical em pouquíssimo tempo. A nova forma de produzir de muitas indústrias, a ampliação das opções de modais para deslocamento e principalmente a menor necessidade de se deslocar graças aos novos modelos de trabalho e a vida acontecendo mais local, mantiveram os índices de poluição baixíssimos e construíram enfim uma qualidade do ar. Todas essas mudanças tiveram impacto direto no superaquecimento global, conseguindo não apenas interrompê-lo, mas também reverter parte dos danos já gerados.

A nova economia mudou também a forma de consumir e o hábito de comprar perdeu espaço para trocas e empréstimos. E muitas pessoas começaram a produzir coisas das mais diversas, pra consumo próprio ou pra gerar renda. Muitas grandes indústrias de consumo com presença global e centenas de marcas desapareceram e deram lugar a milhares de pequenos produtores locais. De comida a produtos de limpeza, passou a ser possível comprar quase tudo de vizinhos. O dinheiro que antes ia para as mesmas poucas empresas, se distribuiu. Do fast fashion, a indústria da moda se tornou mais individual, autoral, em um sistema de produção centrado na valorização das costureiras e alfaiates e com roupas feitas para durar muitos e muitos anos. Na nova economia nada mais era simplesmente descartável. A relação com resíduos mudou também radicalmente, pois na economia circular já não existia jogar fora. Quase todas as casas e praças passaram a ter composteiras, transformando resíduos orgânicos em adubo. Competições de inovação em universidades e escolas técnicas levaram ao desenvolvimento de muitas técnicas e processos de reciclagem de todos os tipos de materiais, tornando a reciclagem enfim uma realidade. O que ainda podia ser usado, circulava entre as pessoas. E alguns produtos como absorventes e fraldas descartáveis caíram em desuso. Os lixões desapareceram de todo o mundo, restando apenas aterros sanitários. E um acordo global impediu definitivamente que resíduos de um país fossem enviados ou vendidos para outro país.

Mas a mais sutil e bonita mudança que começou durante o período do isolamento foi a crescente solidariedade entre as pessoas. O Coronavírus ativou medos e inseguranças de todos os tipos e as notícias vindas da Europa, mostrando uma acelerada curva de contágio e um cada vez maior número de mortos, deixou todos em posição de extrema vulnerabilidade. Quem não era grupo de risco, conhecia alguém que amava que era do grupo de risco e assim todos viviam em estado de atenção e cuidado. Primeiro foi um recado no elevador de vizinhos se oferecendo para fazer compras ou resolver coisas na rua para aqueles que não podiam sair. Em seguida começaram doações de dinheiro para quem precisava pagar contas ou custos médicos, encontros online para exercícios ou conversas que ajudassem a manter a mente sã, cuidado coletivo de crianças que estavam sem aula, revezamento na limpeza dos espaços compartilhando permitindo que esses profissionais também pudessem estar isolados… E assim foi. As barreiras entre as pessoas foram caindo, inclusive entre pessoas muito diferentes, e a desconfiança deu lugar a curiosidade. Vizinhos descobriram não apenas o nome uns dos outros, mas também suas histórias de vida. E quando o isolamento foi acabando, essas novas relações apenas se intensificaram, ganhando também os espaços públicos do bairro e se expandindo para os pequenos comerciantes da região. Em pouco tempo se consolidaram fortes comunidades locais, com característica próprias e articuladas, interagindo com o poder público e estabelecendo uma micropolítica cotidiana muito efetiva para resolver localmente muitos desafios globais. As pessoas puderam viver a potência do coletivo e, pra mim, essa foi a base que tornou todas as outras mudanças possíveis.

Contando assim pode parecer que tudo foram flores, que foi fácil, que todo mundo vive finalmente concordando em harmonia e feliz. Obviamente não foi o caso e ainda não é. Teve muita gente que ficou revoltada com essas mudanças e tentou impedí-las de todas as formas que pôde. Tem gente revoltada até hoje. É que tinha gente que estava reinando naquele velho capitalismo e acostumada a existir nesse mundo com poder absoluto e dinheiro sem limites. Essa galera não queria mudar nada. Mas a revolta de alguns nunca impediu a história de trilhar seu curso. A revolta da nobreza não impediu a Revolução Francesa, a revolta da casa-grande não impediu a abolição da escravidão, a revolta de homens não impediu o voto das mulheres. Pra fazer uma mudança radical, nunca foi preciso todo mundo, só gente suficiente.

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